domingo, 28 de fevereiro de 2010

Nós somos o trânsito! Everyday is a Holiday.



Entre o comunismo e a propriedade há m mundo a construir, já dizia Proudhon Sec. XIX entre ser enlatado no chamado transporte coletivo na hora do rush e a luta de todos contra todos no transporte privado automobilístico há um mundo a construir. Nem a anulação do individuo, nem o cada um por si.
Esse talvez seja um dos inúmeros significados que podem ser atribuídos à bicicletada: a versão brasileira da internacional Critical Mass (Massa Critica) ganhou, a partir de 2002 as ruas de São Paulo e Florianópolis. Ocorrências similares tem acontecido em outras cidades brasileiras, como Brasília, Porto Alegre, Petrópolis e Rio de Janeiro. É provável que, quando estas linhas estiverem sendo lidas por você, outras cidades brasileiras já tenham também suas bicicletadas mensais.


A MASSA CRITICA surgiu em 1992 na cidade de São Francisco quando Chris Carlsson foi a uma reunião da São Fracisco Bike Coalition levar a idéia que havia sido discutida e gerada por um grupo de pessoas do qual ele fazia parte. Levando-se em conta que havia muitos ciclistas na cidade e que as condições para o trafego de bicicleta eram muito ruins, a idéia consistia em se juntarem uma vez por mês e fazer essa presença ser sentida pelos próprios ciclistas e pelo resto da cidade, ao pedalarem juntos para a casa.

A primeira MASSA CRITICA ocorreu em setembro de 1992 e contou com cerca de 60 pessoas. Em pouco tempo a idéia se espalhou pelo mundo, de norte a sul, de leste a oeste, para dezenas de cidades, a ponto de hoje em dia ser quase impossível precisar todas as cidades onde elas ocorrem. Em 2 anos de existência, as MASSAS CRITICAS de São Francisco já conseguiam reunir, por vezes, milhares de ciclistas. Também em pouco tempo, o numero de pessoas que passaram utilizar a bicicleta para ir ao trabalho naquela cidade aumentou vertiginosamente.

Ela tornou-se também uma forma comum de expressão e manifestação em todo mundo (principalmente na Europa e nos EUA), usualmente fazendo parte de manifestações contra guerras, contra o BANCO MUNDIAL, o FMI, o G8, nas quais são reivindicadas relações mais ecológicas e justas. Grosso modo, a MASSA CRITICA é uma forma de reivindicar as ruas para os ciclistas e para as pessoas, uma forma de expressão antagônica à chamada “Cultura do Automóvel”. Mas sua forma a torna aberta a uma verdadeira exploração de significados, ainda mais à medida que ela se insere e é (re) formulada em contextos históricos, sociais, culturais, econômicos e políticos tão distintos quanto as cidades onde ela ganhou vida e quanto as pessoas que lhe têm dado vida. Elas podem significar desde a reivindicação de espaço e respeito aos ciclistas ate uma completa transformação da vida cotidiana. É o próprio transito criando na hora do rush uma zona livre de motores, de barulho, de fumaça, de individualismo do cada um por si. Chris Carlsson vai alem , refletindo sobre a MASSA CRITICA de São Francisco:

“A experiência da MASSA CRITICA da a seus participantes algo tangível, mais do que uma mera volta de bicicleta. Na vida cotidiana, a maioria de nós se sente separado e isolado das pessoas em nossa volta. Quantos de nós conhecem seus vizinhos? Quantos de nós viveram no mesmo lugar mais do que poucos anos? A vida moderna no centro do mercado mundial é perversamente abundante quando se trata de bens e serviços. No entanto, na profunda destruição das culturas e comunidades tradicionais que tem sido um pré-requisito da expansão do mercado, temos perdido uma grande parte da nossa humanidade, a parte de nós que encontra seus desenvolvimento na comunidade.


(...) quantos de nós têm a experiência diária ou semanal de encontrar os vizinhos e amigos em um ambiente social que não o do supermercado, do shopping ou da loja? Por que passamos tanto tempo das nossas vidas fazendo coisas sozinhos no meio de uma multidão?

(...) a MASSA CRITICA se como um antídoto da eliminação do espaço publico que infesta nossas vidas. Não sabemos mais (se é que um dia soubemos) por que precisamos de espaço publico, e certamente não sabemos o que fazer com ele quando o temos.

(...) no passado, a oposição política cresceu principalmente nos locais de trabalho e nas comunidades étnicas. Essas antigas formações foram em grande parte derrotadas. A força relativa alcançada nos momentos históricos iniciais via sindicatos e vários problemas governamentais foi desmantelada, e as comunidades, apagadas. A MASSA CRITICA representa um florescente movimento de transito alternativo que traz consigo uma consciência ecológica. (7 de Junho de 1994)


A MASSA CRITICA foi concebida para ser um nome tipo de espaço político, não relativo a protesto, mas sim relativo a celebrar nossa visão e alternativas preferidas, mais obviamente, neste caso, pedalando sobre a cultura do carro. Essencialmente queremos fincar nossas bases nas fortes raízes do mundo, do desdém pela autoridade, da descentralização e da autodireção eu caracteriza nossa historia político-cultural local. (setembro de 1995)”



As técnicas não são neutras (já vimos isso em outra parte), mas por si só não determinam a vida social: são parte de uma totalidade. Se a viabilidade de locomoção rotineira por bicicleta fosse um imperativo no desenvolvimento e planejamento das cidades (como o é hoje em dia a viabilidade do uso rotineiro e irrestrito de carros), isso significaria, provavelmente, cidades em uma escala mais humana, implicaria descentralização e condições mais propicias para um espírito e relacionamentos comunitários. Mas só a mudança tecnologica não nos garante o resultado que queremos alcançar e o mundo em que queremos viver. Se essa mudança se der isoladamente, se não vier acompanhada de uma mudança de determinadas “relações sociais” ou mesmo de outras técnicas, pode até mesmo trazer resultados amargos e não esperados que eclipsariam as transformações positivas (o mesmo se pode dizer das mudanças isoladas de “relações sociais” sem uma mudança simultânea da tecnica ou da tecnologia). Quanto a isso, Chris Carlsson tambem aponta para as limitações da MASSA CRITICA:

Quando pedalo minha bicicleta pela cidade vejo coisas acontecendo, posso parar e explorá-las a fundo sem difi¬culdades. Também vejo meus amigos e conhecidos, posso parar e falar com eles diretamente. Isso, combinado com a ausência da mídia de massa martelando no meu cérebro no isolamento do meu carro, acaba estabelecendo laços orgânicos e canais diretos de experiência e comunicação humanas. Tais laços são potencialmente subversivos em relação ao modo de vida dominante na América moderna. Esse é um dos motivos que me fazem gostar de pedalar.

Mas pedalar não é um fim em si mesmo, da mesma forma que a Massa Crítica abrange muito mais do que simplesmente pedalar. Nossa adoção da bicicleta não elimina um enorme edifício social dedicado a sustentar as indústrias do carro privado e de petróleo. Da mesma forma, os contornos infra-estruturais das nossas cidades e comunidades pouco mudarão em face de nossa escolha pela bicicleta. Por fim, não veremos nenhuma mudança real se continuarmos a agir como consumidores isolados e viajantes de casa para o trabalho nessa mesma condição. Em parte, a Massa Crítica nos permite começarmos a quebrar esse isolamento. Mas está longe de ser suficiente e, até começarmos a desafiar todo um espectro de escolhas tecnológicas nas suas raízes, nossas vidas e a ecologia do planeta provavelmente continuarão a piorar.

Nossa sociedade capitalista de fato não se importa com o que compramos ou com quais brinquedos brincamos, desde que continuemos integrados num sistema que nos exclui sistematicamente das decisões sobre os contornos de nossas vidas ou sobre as tecnologias que devemos escolher. (...) A Massa Crítica é um dos eventos políticos mais importantes desta década depressiva. Sua ausência de líderes formais ou de agenda a deixa aberta para que qualquer um a reivindique de acordo com suas próprias demandas e desejos. Ela não possui outro propósito além da continuação da sua existência, que em si própria é uma afirmação de comunidades que de outra forma não teriam visibilidade ou seriam facilmente ignoradas. Como as novas e autodescobertas comunidades no seio da Massa Crítica se desenvolverão em movimentos políticos de maior confronto, só o futuro dirá. Este é um desafio que aparece diante de todos nós. (Setembro de 1995)


No Brasil, a Bicicletada se insere num contexto em que as leis estatais, talvez paradoxalmente, são mais “progressistas” do que o hábito e o costume no trânsito em relação aos ciclistas: o Código de Trânsito Brasileiro parece estar anos-luz à frente da realidade das ruas em matéria de respeito ao ciclista.

O CTB determina que, na ausência de ciclovia, ciclofaixa ou acostamento transitável a preferência é do ciclista, e que os veículos automotores devem reduzir a velocidade de forma compatível com a segurança no trânsito para ultrapassá-lo, além de guardar distância lateral de um metro e meio durante a ultrapassagem. Mas condenação da sociedade da hora do rush essa hora representa. Suportar o dia-a-dia pela promessa do fim de semana? Mais vale trocar o fim de semana pelo fim da semana. Aí há um mundo a construir... aí no dia-a-dia os ciclistas que circulam nas ruas são vistos como intrusos pelos motoristas, por jornalistas arrogantes e desinfor¬mados e pela própria polícia. Na nossa cultura, a rua está para o carro assim como o mar está para o peixe. A bicicleta é vista como um corpo estranho.

Tão estranho que é a própria polícia que muitas vezes pára o ciclista e o convida a desrespeitar o CTB e o bom senso, mandando-o pedalar na contramão ou sobre a calçada. A bicicleta no Brasil tem sido, política e socialmente, sinônimo de brinquedo de fim de semana, e não de um meio de locomoção. Na periferia da modernidade o carro se torna, além de tudo, o signo do moderno na vida cotidiana. Num país em que o carro não é um bem de consumo acessível a todos, seu valor-signo no sistema de diferenciações e distinções formado pelos bens de consumo torna-se mais forte, e o uso cotidiano da bicicleta acaba se restringindo em grande parte aos sem dinheiro, aos sem poder.

A bicicleta só tem a seu favor sua racionalidade e sua competência. Na economia dos signos e na organização das aparências seu valor é baixo, o que contribui também para que esteja fora do dia-a-dia de boa parte das pessoas, ficando, para essas, reservada apenas ao chamado lazer. Talvez aqui, portanto, as Bicicletadas possam vir a significar uma reivindicação e uma situação ainda mais inusitadas e profundas: a realização na vida cotidiana de cada um da promessa contida e separada no lazer. Os brinquedos deixam de ser simplesmente brinquedos quando libertados do confinamento do lazer, e a hora do rush se esvai pelo caráter lúdico daquilo que continua sendo brinquedo. As Bicicletadas no Brasil podem muito bem significar assim uma e de tudo aquilo que Everyday is a Holiday.

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